(ou Sobre as mulheres e o amor entre as pessoas)
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A menina e a mulher, em seu desdobramento novo e próprio, serão apenas de passagem imitadoras dos vícios e das virtudes masculinos e repetidoras das profissões dos homens. Depois da incerteza dessas transições, o que se revelará é que as mulheres só passaram por todos esses sucessivos disfarces (muitas vezes ridículos) para purificar sua própria essência das influências deformadoras do outro sexo. As mulheres, nas quais a vida se instala e habita de modo mais imediato, frutífero e cheio de confiança, no fundo precisam ter se tornado seres humanos mais maduros, mais humanos do que o homem, pois ele não passa de um ser leviano, que é mergulhado sob a superfície da vida pelo peso de um fruto carnal, que menospreza, arrogante e apressado, aquilo que pensa amar. Essa humanidade da mulher, realizada em meio a dores e humilhações, virá à tona quando ela tiver se livrado das convenções do exclusivamente feminino nas transformações de sua situação exterior. E os homens, que hoje não sentem vir ainda, serão surpreendidos e derrotados por essa humanidade. Um dia (já agora, especialmente nos países nórdicos, os indícios confiáveis a favor disso são eloquentes), um dia se encontrarão a menina e a mulher cujos nomes não significarão apenas uma oposição ao elemento masculino, mas algo de independente, algo que não fará pensar em complemento ou em limite, apenas na vida e na existência: o ser humano feminino.
Tal progresso transformará profundamente a vivência do amor, agora cheia de equívocos, trará alterações profundas (a princípio contra a vontade dos homens ultrapassados), configurando uma relação de ser humano com ser humano, não mais de homem e mulher. E esse amor mais humano (que se realizará de modo infinitamente delicado e discreto, certo e claro, em laços atados e desatados) será semelhante àquele que nós preparamos, lutando com esforço, portanto ao amor que consiste na proteção mútua, na delimitação e saudação de duas solidões.
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Aposto que muitos devem achar que o trecho acima foi escrito por uma mulher, mas se enganaram. Esse trecho faz parte do livro “Cartas a um jovem poeta”, escrito por Rainer Maria Rilke, um famoso escritor alemão. Faz parte de uma das cartas que compõem o livro, essa foi exatamente escrita em 14 de maio de 1904.
É interessante notar que passaram um pouco mais de 105 anos do que foi escrito acima e, apesar de muita coisa ter mudado, ainda não se vislumbra completamente tudo o que ele disse. Realmente hoje vemos como as mulheres de certa forma se emanciparam, principalmente no que se trata à profissão.
Porém, ainda não se vislumbra quando a segunda parte se tornará realidade de fato (“…configurando uma relação de ser humano com ser humano, não mais de homem e mulher”). Ainda hoje vivemos uma “Guerra dos Sexos”. Os homens reclamam das mulheres e as mulheres reclamam dos homens nos relacionamentos. É intrínseco ao relacionamento humano a dificuldade. Mas porque essa reclamação “sexista”? Porque tomar o homem como o oposto da mulher e vice-versa? Afinal, dentro de todos nós há o que é próprio do feminino e do masculino, ambos coexistem dentro de nós.
Muitas vezes, as pessoas se pegam em estigmas do tipo “toda mulher é neurótica”, “todo homem é safado”. Mas se esquecem de que, primeiramente, quando se generaliza sempre se está errado e depois, que no final, é um principalmente o relacionamento entre dois seres humanos, independente do sexo. Com certeza, o homem e a mulher tem muito mais semelhanças entre si do que com qualquer outro ser vivo da terra.
Sob essa ótica, é importante notar que o gênero do ser humano é o que menos importa no final. Primeiro, pelo fato de, enquanto seres humanos, termos o que é próprio do feminino e do masculino dentro de nós. Assim, uma coisa não é o oposto da outra, o ser humano masculino não é o oposto do feminino. Segundo, se temos em nós, tantos características femininas quanto masculinas, porque não dois seres humanos do mesmo gênero não podem se apaixonar um pelo outro? Afinal, não estamos buscando em um relacionamento a oposição.
Colocada essa importância de que o relacionamento é entre seres humanos e não entre homem e mulher, como se fossem opostos, também podemos notar que também um não é o complemento do outro. Por que? O nosso complemento já está dentro de nós mesmos, já que temos o feminino e o masculino, logo não precisamos achá-lo fora. Assim, são duas pessoas inteiras que se relacionam entre si (“…amor que consiste na proteção mútua, na delimitação e saudação de duas solidões”), não buscando oposição, não buscando complementação, apenas lado a lado como companheiros de caminhada. Isso reforça mais ainda a idéia de que não importa o gênero dos seres humanos nesse relacionamento. As pessoas entram por inteiro no relacionamento para somar forças (e no caso de um rompimento também deveriam sair por inteiro, não exatamente do jeito que entraram, mas levando sim consigo as mudanças que agregarem nesse tempo).
Enquanto as pessoas entrarem em um relacionamento com o pensamento de “Guerra dos sexos” continuaremos a viver na superficialidade que vivemos hoje. Espero que algum dia compreendamos isso, para que possamos viver com profundidade e intensidade verdadeira o amor.