Neutralidade de rede: interesses em jogo e questões em aberto

No início do desenvolvimento das redes de computadores, existiam diversas delas desconectadas, usando diferentes tecnologias e protocolos que se comunicavam. A Internet nasceu como um projeto militar, uma tentativa de conectar várias redes em lugares distintos para o intercâmbio de informações; ser uma “rede de redes”. Logo foi amplamente adotada por acadêmicos e cresceu como uma forma de democratização ao conhecimento, permitindo o compartilhamento de descobertas entre pesquisadores de diversos países. Com a criação da Web, a Internet se popularizou e atingiu às demais camadas da população, proporcionando acesso a uma quantidade inimaginável de conteúdos antes restritos a uma pequena parcela e também permitindo a criatividade e criação de novos aplicativos que, depois, vieram a se tornar empresas lucrativas.
Pode-se dizer que hoje a Internet é um dos meios importantes para a disseminação do conhecimento para todos, promovendo a inclusão de pessoas em diversos processos existentes no mundo. Para que a Internet continue a ser esse ambiente de inclusão das pessoas na era do conhecimento, bem como promotor da difusão de informações e da inovação, é necessário manter algumas características técnicas que foram essenciais durante seu desenvolvimento e crescimento. Uma dessas características que suscita muito debate é a neutralidade de rede.
Uma rede neutra é aquela em que não há o favorecimento de uma aplicação em detrimento de outra. A neutralidade de rede pode ser melhor definida como um princípio de projeto de redes de computadores. A ideia é a de que uma rede de informação pública útil aspira tratar todos os conteúdos, sites e plataformas de forma igual. Isso significa, por exemplo, que um pacote transportando conteúdos de uma ligação por voz não pode ser transmitido mais lentamente que um pacote de mesmo tamanho contendo informações de um e-mail.
Apesar desse conceito não ser algo novo, ele tem causado polêmica no Brasil e em outros países e cada vez mais atraído a atenção da opinião pública internacional. De um lado, provedores de conteúdo e comunidade técnica defendem o modelo de neutralidade, de outro lado, provedores de acesso, em sua maioria empresas de telecomunicações, vislumbram formas de maximizar seus lucros por meio da cobrança por vias rápidas (“fast lanes”) para o tráfego de dados, ou por meio de outros artifícios que beneficiam ou prejudicam certo tipo, origem ou destino de tráfego de dados em detrimento dos demais.
Várias pesquisas científicas apontam que há diversas vantagens em se manter a Internet neutra. Dentre as principais estão:
  • Maior incentivo para inovação através da criação de aplicações disruptivas e de novas tecnologias de rede, se comparado com uma arquitetura fechada;
  • Possibilidade de concorrência entre novos entrantes e empresas já estabelecidas, seja na área de aplicações, seja no provimento de acesso à Internet; e
  • Acesso a qualquer serviço que o usuário desejar sem a necessidade de pagamento adicional para esse fim.

Porém, a manutenção de uma Internet neutra não é algo simples, uma vez que há diversos atores nesse ecossistema com diferentes interesses em relação a esse tópico. De uma forma resumida os interesses em jogo para cada um dos atores da rede são:
  • Provedores de Acesso (por exemplo, Vivo, NET, Oi): ao serem impedidos de discriminar conteúdos e aplicações, eles perdem um instrumento de controle de suas redes, o que pode levar a redução de lucros e diminuição do potencial de eficiência de suas redes. Essas perdas podem levar à redução de incentivos para inovação na infraestrutura de telecomunicações e à redução na geração de empregos do setor;
  • Grandes Provedores de Conteúdo: os grandes da Internet (por exemplo, Google, Facebook, Netflix) não precisariam mais negociar condições especiais para o tráfego de seus conteúdos com provedores de acesso, e assim podem alocar mais recursos em inovação e geração de empregos. Por outro lado, a proibição de acordos para priorização de tráfego reduz os instrumentos disponíveis para que eles mantenham sua hegemonia, tendo em vista que pequenos provedores terão condições de oferta semelhantes;
  • Pequenos Provedores de Conteúdo: são os grandes beneficiários da neutralidade da rede. Com o tráfego de seus conteúdos sendo tratados da mesma forma que o dos grandes, há uma redução nas barreiras de entrada no mercado. Pequenos provedores de conteúdo não vão precisar negociar com provedores de acesso para terem uma oferta de qualidade de seus aplicativos, e a maior diversidade de iniciativas levará a um aumento na inovação como um todo; e
  • Usuários: com a neutralidade da rede, usuários terão acesso a conteúdos mais diversificados, impedindo efeitos de filtro de conteúdo que são hoje aplicados pelos grandes provedores de conteúdo. Há também um ganho na capacidade de autonomia, visto que usuários terão maiores incentivos para também se tornarem provedores de conteúdo. Há também ganhos expressivos no campo da liberdade de expressão, já que a neutralidade da rede impediria que provedores de acesso criem bloqueios de conteúdo.

Hoje em dia há pelo menos três formas de um provedor de acesso discriminar um conteúdo ou aplicação específica na Internet, violando a neutralidade de rede:
  • Bloqueio total da aplicação e/ou conteúdo na Internet;
  • Redução da sua velocidade de acesso em comparação a outras aplicações e/ou conteúdos; e
  • Cobrança de um preço diferente pelo acesso àquele conteúdo e/ou aplicação em comparação aos demais.

No Brasil, a Lei nº 12.965, conhecida como Marco Civil da Internet, está em vigor desde 2013 e garante a neutralidade de rede na Internet brasileira (Art. 3º, IV). De acordo com a mesma lei (Art. 9º), “o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”. Apenas há a previsão de discriminação ou degradação do tráfego em casos de requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e priorização de serviços de emergência (Art. 9º, § 1º).
Apesar do Brasil já contar com uma lei que protege a neutralidade de rede, há duas questões relevantes nesse área que continuam ainda em aberto. A primeira delas é como verificar tecnicamente se a neutralidade de rede tem sido cumprida pelas empresas e a outra é se a discriminação de tráfego ocorre apenas nos casos previstos pelo Marco Civil da Internet. Esse debate ainda vai dar muito pano para manga antes de ser superado.
Referências:
WU, T. Network Neutrality, Broadband Discrimination. Journal of Telecommunications and High Technology Law, Vol. 2, p. 141, 2003.
WU, T. Network Neutrality FAQ. Disponível em: < http://www.timwu.org/network_neutrality.html >. Acessado em: 06 jul. 2016.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Lei Nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm >. Acessado em: 06 jul. 2016.
RAMOS, P. Neutralidade da Rede. Disponível em: < http://www.neutralidadedarede.com.br/ >. Acessado em: 06 jul. 2016.

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