Um assunto que está em debate atualmente e que tem gerado muita polêmica é a limitação por franquia de dados na Internet fixa. Tudo começou ano passado, quando uma grande empresa anunciou que adotaria esse modelo até o final de 2016. Esse anúncio provocou uma reação muito negativa entre os internautas. Em seguida, o presidente da Anatel fez algumas declarações polêmicas dizendo que a era da Internet Ilimitada chegou ao fim, que quem joga online gasta um volume de banda da Internet e ainda que a propaganda do ilimitado e do infinito acabou desacostumando o usuário.
Um dos principais argumentos utilizados pelas empresas para a instituição da franquia de dados na Internet é o de que as pessoas já estão acostumadas ao pagamento baseado no consumo como água, luz e gás, e que esse modelo seria justo, pois quem consome mais dados pagaria mais. Outro argumento bastante falado é de que a rede encontra-se congestionada hoje em dia e que não é possível mantê-la sem o uso de franquia.
De fato, a Internet nunca foi ilimitada: sempre houve a limitação por velocidade. Se fizermos a conta da quantidade de dados por segundo que é possível de ser baixada na velocidade contratada, é possível chegar ao valor máximo de dados por mês. O engenheiro Rubens Kuhl fez esse cálculo para alguns planos existentes de uma empresa. Por exemplo, para um plano com velocidade de 15Mbps, é possível baixar até 4147 GB, enquanto que um plano de 4Mbps esse valor é de apenas 1192 GB.
Quando se fala em pagamento por consumo, normalmente compara-se a Internet com a água, o que não é uma boa comparação. A ideia de que a franquia de dados insere um medidor é falsa, tendo em vista que esse medidor já existe (a velocidade). Além disso, a água é um recurso natural esgotável, enquanto dados podem ser gerados. Uma outra questão complicada nessa comparação é a medição do “consumo”. É relativamente simples medir o consumo de água, enquanto fazer isso no tráfego de dados não o é. Existem diversos fatores complicantes, como em que ponto da rede colocar o medidor, já que essa escolha pode influenciar na medida. Outra questão também é o que entra nessa “conta”. Para o recebimento de um fluxo de dados são necessários diversos pacotes para estabelecer conexão na comunicação; também pode haver necessidade de retransmissão de pacotes devido a congestionamento na rede. Tudo isso pode ser visto como dados de certa forma “inúteis” para os usuários finais e pagar por eles pode ser difícil de justificar.
Já sobre o congestionamento da rede, há diversas técnicas e tecnologias que podem ser utilizadas para lidar com esse problema. Hoje, com o uso cada vez mais comum da fibra óptica para ligar os provedores de acesso a Internet e os clientes, é possível chegar a grandes velocidades e a tráfegos maiores de dados. No protocolo TCP, há dois mecanismos utilizados para lidar com o congestionamento da rede, conhecidos como congestion avoidance e slow start. Porém, o projeto atual deles tem o efeito indesejável de não ser possível usar todo o potencial proporcionado pela fibra óptica em termos de tráfego. Inclusive hoje há estudos na área de redes de computadores sobre como melhorar esses mecanismos. Tendo isso em vista, é complicado afirmar que a rede esteja chegando a um patamar de congestionamento tal que justifique o uso de franquias.
Além da fibra, muitas redes têm adotado o uso de CDNs. Com o seu uso, os conteúdos mais utilizados tendem a estar mais próximos ao usuário, sendo desnecessário o tráfego destes dados por toda a rede sempre que solicitados. Isso ajuda no controle do congestionamento da rede. Também existem os Pontos de Troca de Tráfego ou IXPs (Internet Exchange Points), que nada mais são do que pontos concentradores em que diversas redes podem se interligar diretamente e trocar dados entre elas. Por exemplo, em São Paulo há um ponto em que as redes de várias empresas grandes (como Google, Facebook, Netflix, UOL, etc) se conectam, evitando que diversos conteúdos tenham trafegar por um longo caminho até chegar aos usuários. Uma das principais vantagens do uso dos IXPs, é a racionalização dos custos, uma vez que os balanços de tráfego são resolvidos direta e localmente e não através de redes de terceiros, muitas vezes fisicamente distantes. Sendo assim, também ajudam nesse problema de congestionamento.
O modelo de franquia de dados na Internet fixa traz dificuldade para os usuários contabilizarem o uso de dados em sua rede. Diversos softwares, como o antivírus, e o sistema operacional, fazem atualizações automaticamente, sendo muitas dessas necessárias para a segurança dos usuários. Em um cenário com franquia de dados implementada, eles podem gastar uma grande quantidade delas nessas atualizações e, por isso, ficarem tentados a desativar esses recursos para gerar economia. Isso deixaria os dispositivos mais vulneráveis a ataques e vírus. Falando nesse assunto, também é possível que dispositivos infectados por vírus consumam dados sem que os usuários saibam, além de gerar ataques a outras redes.
Com o uso crescente de aplicações na nuvem, é comum os usuários fazerem download e upload de arquivos com uma maior frequência. Também com o advento da Internet das coisas, através da qual a conexão de diversos dispositivos na rede mundial tornou-se realidade, há maior necessidade de tráfego de dados. Todo esse cenário acaba tornando a franquia de dados um grande inconveniente na Internet fixa.
Segundo o relatório “Measuring the Information Society Report” da UIT, dos 190 países monitorados, 130 deles oferecem prioritariamente planos de banda larga fixa com Internet ilimitada. Na tabela abaixo há um comparativo entre diversos países no quesito velocidade e franquia de dados por mês.
Vale notar que os países que adotam franquia de dados possuem limites bem mais generosos do que os propostos a serem adotadas no Brasil. Rubens Kuhl calculou que em um plano de 4 Mbps e com uma franquia 50 GB, haveria uma redução no consumo de dados da ordem de 95,8% (sem a franquia o usuário poderia atingir até 1192 GB).
Por isso, o debate acerca dessa questão tem sido tão acirrado no país. Além disso, as justificativas técnicas para a sua implantação são controversas, não obtendo consenso nem mesmo dentro da comunidade técnica.
Na semana passada, o Ministro Kassab do MCTIC, fez uma declaração que a Internet fixa deve continuar sem limitação por franquia de dados. Se isso encerra esse debate ainda não se sabe, mas com certeza dá uma apaziguada nos ânimos dessa grande polêmica.